AFASTAMENTO DAS EMPRESAS DAS CONTRATAÇÕES PÚBLICAS EM RAZÃO
DA INSEGURANÇA JURÍDICA NO PROCESSO SANCIONADOR
Resumo:
Apresentando-se como o maior comprador do país, a Administração Pública gasta aproximadamente 20% do PIB brasileiro
anualmente naquilo que se apresenta como necessário para o atendimento do
interesse público. Mesmo diante da excepcional cifra que representa tal
porcentual, parte da iniciativa privada despreza tal mercado em razão de
diversos motivos, sendo um deles a falta de segurança jurídica durante a
condução de processos administrativos sancionatórios realizados pela
Administração quando se incorre em infrações administrativas. Além da crítica a
tal situação, apresentar-se-á um procedimento para disciplinar o exercício do
poder punitivo estatal, de forma a proteger o direito de defesa dos
particulares e a legitimidade da punição imposta, circunstâncias que garantem,
assim, a segurança jurídica necessária para que tal segmento de mercado se
torne atraente para o mercado.
Palavras-chave:
Contratações públicas – Sanções administrativas – Segurança jurídica –
Exercício do direito punitivo – Garantia do direito de defesa – Legitimidade da
sanção.
Abtract: As
the biggest buyer of the country, Brazilian Public Administration spends
annually about 20% of Brazilian GDP on which is considered necessary to meet
the public interest. Even with such exceptional percentage, part of private
sector despises this market segment due to several reasons such as the lack of
legal certainty in the conduction of sanctioning administrative proceedings
made by Public Administration when it incurs administrative violations. In
addition to the criticism of such situation, this work will present a procedure
to discipline the exercise of state punitive power in order to protect the
rights of defense of individuals and the legitimacy of the imposed punishment,
which are circumstances that warrant the legal certainty necessary for this
market segment become attractive.
Keywords: Public Contracts -
Administrative Penalties - Legal Certainty - Exercise of Punitive Law -
Guarantee of Right of Defense - Sanction of Legitimacy
1. INTRODUÇÃO
A licitação, conforme se infere do art. 37, inc. XXI, da
Constituição da República de 1988, é o expediente administrativo utilizado pelo
Estado para selecionar particulares que desejam se relacionar comercialmente
com o Poder Público, com o propósito de fornecer bens, prestar serviços, construir
obras etc.
Conforme divulgado pela Organização para a Cooperação e o
Desenvolvimento Econômico (OCDE), o impacto econômico das compras
governamentais alcança 20% do Produto Interno Bruto (PIB). Diante do referido
porcentual, não restam dúvidas de que o Estado comprador brasileiro, por meio
da União federal, dos 23 Estados, Distrito
Federal e dos 5.570 Municípios, apresenta-se como um grande consumidor,
adquirindo bens, que vão desde objetos comuns e simplórios, como a aquisição de
copos descartáveis e café, até objetos complexos, de alto valor agregado,
estratégicos, a exemplo da compra de aviões de caça etc.
Acerca desta função estatal, ensina Manuel Garcia-Pelayo que
o “Estado é, em todo o caso, o primeiro dos clientes do mercado nacional, exercendo,
como sabemos, uma função redistributiva do produto mediante a transformação dos
impostos e contribuições em bens e serviços sociais” (2009, p. 138).
Mesmo diante de um enorme volume de recursos públicos
disponíveis, muitas empresas demonstram aversão quando indagadas acerca dos
motivos pelos quais não se relacionam comercialmente com o Poder Público, seja
qual for o nível de governo.
Como resposta, elencam diversas razões para justificar a
distância do referido segmento, a exemplo da burocracia estatal; do
direcionamento da licitação para determinado particular por meio da fixação de
regras editalícias que somente podem ser atendidas por um participante; a
interpretação das regras do edital, durante a licitação, com excesso de
rigorismo a fim de beneficiar determinado proponente; a revogação da licitação
sem apresentação de um fato superveniente quando o vencedor não é o preferido
do Poder Público; a inadimplência do
Poder Público durante a execução do contrato; a intervenção do Tribunal de
Contas competente com o escopo de modificar o valor da contratação, em razão da
verificação de sobrepreço; a imposição de renegociação de contratos quando da
troca de gestão administrativa; o regular pagamento em atraso sem o devido
custeamento dos prejuízos do particular e a falta de critérios e respeito às
regras aos existentes durante a condução de processos sancionatórios,
expediente que se busca estudar neste artigo etc.
Diante destas circunstâncias, tem razão os muitos
empresários que se afastam deste segmento de mercado, haja vista evitar colocar
seu capital em risco, pois é patente a insegurança jurídica observada. Já em
relação àqueles que se submetem a tais adversidades, aceita-se correr perigo, o
que é intrínseco das atividades empresariais.
Sendo assim, não há como negar que a insegurança jurídica
verificada no âmbito das contratações públicas acaba por tornar tal segmento de
mercado pouco atraente para a iniciativa privada, sendo essa uma das grandes
razões para muitas empresas não acudirem ao chamado do Poder Público, para
apresentar proposta para executar obras, prestar serviços ou fornecer os bens
necessários para a Administração licitante perseguir os seus objetivos
institucionais.
Por derradeiro, presta-se tal artigo a demonstrar a
insegurança jurídica no âmbito das contratações públicas, em especial durante a
condução do processo administrativo sancionador e, em razão do hiato legal,
delinear um procedimento mínimo para regular o exercício do poder punitivo
estatal e garantir o direito de defesa dos particulares e a legitimidade da
punição imposta, assegurando, desta feita, a segurança jurídica necessária para
que tal segmento de mercado se torne atraente para o mercado.
2.
A INSEGURANÇA JURÍDICA NO ÂMBITO DAS CONTRATAÇÕES PÚBLICAS
Eros Grau, em seu voto concedido nos autos da Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 3.685-8/DF, ensina, in verbis:
“Onde, quando nasce e para que serve a
segurança jurídica? As considerações de WEBER são suficientes ao esclarecimento
dessas questões: as exigências de calculabilidade e confiança no funcionamento
da ordem jurídica e na Administração constituem uma exigência vital do
capitalismo racional; o capitalismo industrial depende da possibilidade de
previsões seguras --- deve poder contar com estabilidade, segurança e
objetividade no funcionamento da ordem jurídica e no caráter racional e em
princípio previsível das leis e da Administração. Pois o direito moderno
presta-se precisamente a instalar o clima de segurança, em termos de
previsibilidade de comportamentos, sem o qual a competição entre titulares de
interesses em permanente oposição, no seio da sociedade civil, não fluiria
plenamente” (2008).
Diante de tal importância, no âmbito das contratações
públicas, “A Lei nº 8.666 preocupou-se intensamente em consagrar regras sobre a
disciplina licitatória, visando a reduzir a margem de indeterminação na
aplicação concreta de seus dispositivos. A existência dessas regras é de vital
importância para a segurança jurídica de todos os envolvidos.” (JUSTEN FILHO,
2012, p. 70).
É por tal razão que o atual Estatuto federal de Licitações e
Contratos Administrativos assenta um exaustivo rol de procedimentos, objeto de
tantas críticas, com o escopo de disciplinar, por meio de regras inflexíveis e
detalhistas, a conduta do administrador público quando conduz o procedimento
licitatório. Ante a tal desiderato, a “licitação não é concorrência livre, mas
aprisionada. Por mais que se tenha abrandado o regime jurídico do cárcere,
ainda está presa numa cela de regras, que a isola da vida lá fora, isto é do
mercado, no qual – e somente no qual – ocorre a verdadeira concorrência.”
(BARROS, 1999, pp. 152/153)
Mesmo provido de pormenorizado regramento, a certeza do
direito, fato que garante a possibilidade de realização de previsões seguras e
objetivas do funcionamento da máquina estatal, não é garantida, uma vez ser
comum a mudança de entendimentos e interpretações das normas legais no
transcurso dos procedimentos afetos às contratações públicas, fato que gera,
fatalmente, incertezas e receios e, por conseguinte, instabilidade nas relações
jurídicas no âmbito deste segmento de mercado e que acarreta, consequentemente,
o afastamento de parte do empresariado deste mercado.
Neste sentido, ensina Rafael Valim que “a certeza jurídica
[…] significa o seguro conhecimento das
normas jurídicas, condição indispensável para o homem tenha previsibilidade,
podendo projetar a sua vida e, assim, realizar plenamente seus desígnios
pessoais.” (2010, p. 91)
Assim, é dever da ordem jurídica garantir a segurança
jurídica no âmbito destas relações, consoante garantem expressamente o art. 5º,
caput e inc. XXXIV, bem como o art.
2º, caput, da Lei fed. nº 9.784/1990.
Acerca da observância do referido princípio no âmbito do
Direito Administrativo, preleciona Maria Sylvia Zanella Di Pietro, in verbis:
“O princípio se justifica pelo fato de
ser comum, na esfera administrativa, haver mudança de interpretação de
determinadas normas legais, com a conseqüente mudança de orientação, em caráter
normativo, afetando situações já reconhecidas e consolidadas na vigência de
orientação anterior. Essa possibilidade de mudança de orientação é inevitável,
porém gera insegurança jurídica, pois os interessados nunca sabem quando a sua
situação será passível de contestação pela própria Administração Pública”(2009,
p. 76).
Denota-se, portanto, que a garantia aos participantes do
certame licitatório de um regramento que assegure certeza e previsibilidade da
atuação estatal, circunstância que gera confiança e certeza jurídica pelos interessados
- garantindo, assim, a segurança jurídica -, são os elementos necessários para
a iniciativa privada analisar e calcular os riscos de atuar neste segmento
mercadológico, pois, diante da incerteza de retorno do capital e remuneração
adequada (lucro), corre-se o risco de não ser acudido o chamado da
Administração Pública, restando prejudicado o interesse público almejado com a
colaboração particular.
Por tal razão, é imprescindível que a lei, disciplinadora da
atividade administrativa, conforme determina o art. 37, caput, da Constituição da República, seja desprovida de lacunas ou
regras imprecisas, não no âmbito do processo sancionatório, mas em todo o
processo sancionatório e durante a execução do objeto contratado, que
prejudicam a previsibilidade da conduta estatal no âmbito deste segmento
mercadológico, circunstância que pode afastar particulares das oportunidades de
negócios oferecidos pelo Estado.
Assim, verifica-se que somente a segurança jurídica,
salvaguardadas por regras dispostas na lei e reproduzidas no ato convocatório
que garantam a possibilidade de se antever a ação da Administração no âmbito do
processo administrativo, alijará o risco econômico observado, fato que tornará
atraente tal segmento de contratação pela iniciativa privada
3.
A INSEGURANÇA JURÍDICA NOS PROCESSOS ADMINISTRATIVOS SANCIONADORES
O estudo do poder punitivo do Estado quando exerce função
administrativa é extremamente recente, sendo que “ainda não despertou interesse
e debates proporcionais à magma importância, não gerou maior atenção da
doutrina, nem tampouco debates jurisprudenciais.” (MOREIRA, 2004, p. 1)
Assim, “não obstante a frequência com que são aplicadas e a
gravidade de suas consequências, as sanções administrativas não encontram no
ordenamento jurídico pátrio uma disciplina jurídica satisfatória. Não há lei
disciplinando o exercício da atividade punitiva pela Administração Pública, tal
como ocorre na Espanha, na Itália e na Alemanha. No Brasil as sanções
administrativas são tratadas de modo assistemático pelos inúmeros diplomas
legais que criam infrações administrativas.” (MUNHOZ, 2007, p. 16)
No que tange à aplicação de sanções no âmbito das
contratações públicas, verifica-se a inexistência de um regulamento mínimo e
sistemático na Lei fed. nº 8.666/93, que estabelece as normas gerais de
licitação, bem como na Lei do Pregão e no diploma legal que instituiu o Regime
Diferenciado de Contratações (RDC), disciplinando o exercício do poder
punitivo, protegendo e dando efetividade às garantias constitucionais, ou
arrolando os pormenores do processo sancionatório, garante que um procedimento
mínimo e uniforme a ser observado pela Administração Pública brasileira. O que
se vislumbra, todavia, no bojo do Estatuto federal licitatório, é tão somente
uma tímida determinação arrolada no art. 87.
Acerca do problema que a lacuna legal acaba por gerar,
ensina Rafael Munhoz de Mello, in verbis:
Há na Lei n. 8.666/93 exemplo evidente
de norma punitiva que não goza de clareza e precisão, ou seja, não atende ao
princípio da tipicidade. Trata-se da norma prevista no art. 87, que arrola as
sanções administrativas que podem ser aplicadas a particular que celebre
contrato com a Administração Pública. Todas as medidas punitivas ali referidas
têm por pressuposto a ‘inexecução total ou parcial do contrato’ É dizer, a
hipótese de incidência de tal norma punitiva é descumprir o contrato, de modo
total ou parcial – expressão vaga e imprecisa, que abrange uma vasta gama de
situações de fato.
[...]
De consequência, não tem o particular
que celebra contrato com a Administração como saber se seu comportamento vai
levar o agente administrativo a aplicar mera advertência ou aplicar a
declaração de inidoneidade – sanções administrativas muito distintas em suas
consequências. Assim, a liberdade da Administração Pública na escolha da sanção
é praticamente irrestrita, o que vai de encontro com o princípio da tipicidade,
ao princípio da segurança jurídica que está em sua origem e, finalmente, ao
princípio do Estado de Direito, fonte dos dois primeiro (2007, 137).
A Lei fed. nº 8.666/1993 não avançou em nada no que diz
respeito à proteção dos direitos e garantias individuais conferidos pela
Constituição de 1988. Neste sentido, tendo em vista que o Estatuto das
Licitações foi editado após cinco anos da promulgação do Texto Constitucional
de 1988, os ideais de proteção aos direitos dos administrados, garantidos
constitucionalmente, por serem pulsantes à época, também poderiam ser
introduzidos na Lei de Licitações, como foi garantido, por exemplo, a partir do
art. 127 da Lei fed. nº 8.112/1990, que dispõe sobre o regime jurídico dos
servidores civis da União, do art. 69 da Lei federal nº 12.529/2011, que
estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência etc., dispositivos que
estabelecem determinadas condutas como infrações administrativas, fixando, por
conseguinte, as correspondentes sanções.
Vale a pena asseverar que quando o Estado impõe sanções no
campo penal, observa-se que, por mais ínfimas que sejam, são impostas por um
Poder específico, investido tão somente nesta atribuição institucional,
devidamente especializado, que procede ao julgamento de forma imparcial e por
meio de um juiz desinteressado na causa, podendo o cidadão recorrer em até três
instâncias distintas e autônomas, seguindo um regramento minuciosamente
disposto no Código Penal e respaldado pelas garantias e direitos individuais
estabelecidos no Texto Constitucional.
Por sua vez, quando o Estado exerce função administrativa,
de forma típica ou atípica, e necessita punir particulares, in casu, no âmbito das contratações
públicas, observa-se a inexistência da referida estrutura (que garante, por
exemplo, o duplo grau de jurisdição), que as sanções (às vezes muito mais
graves do que aquelas aplicadas no âmbito penal) são aplicadas por servidores
públicos muitas das vezes sem formação jurídica. Somado a isso, observa-se que
a própria Administração sancionadora, juiz na ocasião, é a parte interessada e
a prejudicada pela infração administrativa cometida pelo administrado, fato que
pode prejudicar a imparcialidade necessária para julgar a situação. Demais
disso, vislumbra-se não ser necessário que o particular acusado de supostamente
cometer uma infração administrativa seja defendido por um advogado, defesa que
já é obrigatória quando o Estado exerce função punitiva no âmbito penal, fato
que pode gerar um prejuízo qualitativo à defesa da peça produzida. Aliás, o eg.
Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante nº 5: estabelecendo não ser
obrigatória defesa elaborada por advogado em processo administrativo
disciplinar. Assim, estabelece a referida súmula vinculante que, in verbis: “A falta de defesa técnica
por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”.
Conforme se observa, o exercício do poder punitivo pela
Administração Pública no âmbito das contratações públicas pode ser circundado
de insegurança jurídica, uma vez que pode ser utilizado de forma descontrolada
e sem limitações, sendo esse um campo propício para o cometimento de
arbitrariedades, a exemplo da imposição de sanções com desvio de finalidades.
Logo, a ordem jurídica a qual a Administração sancionadora deve estrita
reverência pode ser facilmente violada, circunstância que tornará ilegítima a
sanção imposta ao licitante ou contratado.
Neste sentido, é comum a observância das seguintes
irregularidades no âmbito do processo administrativo sancionador, muitas das
vezes corrigidas pelo Poder Judiciário:
•
Aplicação de sanções desproporcionais à
infração administrativa incorrida pelo licitante ou contratado;
•
Ausência de culpabilidade do apenado
haja vista restar demonstrado nos autos do processo administrativo que a
inexecução contratual foi devidamente justificada;
•
Imposição de sanção por agente público
incompetente;
•
Inexistência do duplo grau de
jurisdição quando observa-se que a mesma autoridade que impôs a sanção foi
aquela que julgou o recurso hierárquico interposto;
•
Imposição de sanções sem observar
qualquer tipo de formalidade, violando o princípio do devido princípio legal;
•
Cerceamento do direito de defesa do
licitante ou contratado de produzir provas em sua defesa;
•
Aplicação de mais de uma sanção tendo
arrimo a mesma sanção administrativa, o que acaba por transgredir o princípio
do non bis in idem;
•
Ampliação do alcance e efeito das sanções
restritivas de direito;
•
Imposição de sanções sendo ausente
qualquer tipo de publicidade estatal em relação aos atos praticados.
Diante deste contexto, é imprescindível delimitar o poder
sancionador da Administração Pública, estabelecendo os limites da atividade
punitiva de um Estado Democrático de Direito, conferindo aos particulares a
previsibilidade da conduta do agente público quando maneja o instrumental
jurídico punitivo, o que garante a segurança jurídica necessária, em relação ao
problema ora estudado, para que o segmento das contratações públicas
apresente-se atraente para a iniciativa privada.
Em outras palavras, “o licitante deverá ter perfeito
conhecimento prévio do que se reputa como ato ilícito e das sanções cominadas
como consequência. Não é cabível atribuir competência discricionária para
apurar ilicitude e fixar sanções. As garantias asseguradas a todo sujeito
exigem a aplicação dos princípios jurídicos fundamentais, entre os quais está o
da segurança jurídica, especialmente quando se considera o exercício de
competências punitivas.” (JUSTEN FILHO, 2012, p. 613).
Assim, passa-se a delinear um procedimento administrativo
sancionador mínimo com o condão de regular o exercício do poder punitivo
estatal, de forma a garantir o direito de defesa dos particulares, bem como
assegurar a legitimidade da punição imposta.
4. O PROCESSO
ADMINISTRATIVO SANCIONADOR
A fim de afastar parcialmente a insegurança jurídica
apontada, sugere-se um procedimento administrativo conformado aos princípios
constitucionais de direito administrativo sancionador.
Diante da lacuna legislativa apontada, pode-se utilizar
subsidiariamente a Lei editada pelo ente político cujo teor assenta as regras
para condução dos processos administrativos, a exemplo da Lei nº 9.784/1999,
editada pela União; a Lei n° 10.177/1998, do Estado de São Paulo etc.
Cumpre-nos esclarecer que a jurisprudência já pacificou a ideia de que a Lei
Federal de Processo Administrativo pode ser utilizada subsidiariamente para
aqueles entes políticos que não disciplinaram tal assunto em sua órbita
administrativa.
Pois bem.
Preliminarmente, cumpre-nos esclarecer que a Lei fed. nº
10.520/2002 e a Lei fed. nº 12.462/2011 são omissas a respeito do procedimento
a ser adotado para a imposição da sanção em razão de infração cometida no
âmbito do pregão e RDC, respectivamente. Sendo assim, com estribo no art. 9º da
Lei nº 10.520/2002 e art. 47, § 2º, da Lei fed. nº 12.462/2011, tem-se que as
regras da Lei nº 8.666/1993 aplicam-se subsidiariamente ao pregão e ao RDC,
salvo regulamento interno ou legislação do ente político dispondo de outra
forma, deverá o Poder Público seguir o mesmo procedimento, prazos etc., fixados
no art. 87 da Lei de Licitações.
No âmbito da licitação ou durante a execução do contrato
administrativo, diante da verificação de uma das infrações administrativas
constantes dos arts. 86 e 87 da Lei fed. nº 8.666/1993, do art. 7º da
10.520/2002 e do art. 47 da Lei fed. nº 12.462/2011, que poderá ser relatada
pelo pregoeiro, fiscal ou gestor do contrato, representada pelo órgão de
controle interno do órgão ou entidade ou denunciado por terceiros, é obrigação do Poder Público licitante
ou contratante, por meio da autoridade competente, instaurar um processo
administrativo punitivo a fim de apurar o ocorrido, inexistindo discricionariedade da autoridade competente para tomar
tal medida.
Além da necessidade de instauração do processo punitivo de
ofício pela Administração contratante ou promotora da licitação, o referido
expediente administrativo também poderá
ser instaurado a pedido de interessados,
sendo necessário, neste caso, a demonstração pelo terceiro da prática do
ilícito administrativo durante o processamento da licitação ou execução do
contrato administrativo.
Acerca da deflagração do processo punitivo pelos
interessados, é o magistério de Antonio Cecílio Moreira Pires:
"Quanto à instauração do processo,
por iniciativa do interessado, ela deverá ser por escrito, salvo se for
permitida a solicitação oral, nos termos do art. 6º da Lei 9.784/99. Assim, o
pedido do interessado deverá conter o endereçamento, a sua identificação ou de
quem o represente, o domicílio do requerente ou local para o recebimento de
comunicações, a formulação do pedido, com exposição fática e devidamente
fundamentada, e, ao final, data e assinatura do requerente ou de seu
representante.
Na instauração provocada do processo
administrativo, a Administração será instada a produzir uma atividade
prestacional, seja no estrito interesse do administrado, seja em razão da
proteção a direitos difusos ou coletivos.
É de lapidar clareza que, na
instauração provocada do processo administrativo, o particular estará a
exercitar o seu direito de petição, nos moldes preconizados pelo art. 5º,
inciso XXXIV, letra “a”, e art. 5º, XXXIII" (2014, p. 88).
4.1 Da instauração do
processo administrativo sancionador
A deflagração de um processo administrativo sancionador,
segundo o regulamento interno da entidade ou legislação do ente político,
poderá ser exteriorizada por meio da edição de uma ato administrativo, a
exemplo de uma portaria, decreto ou despacho da autoridade competente.
Reverenciando o princípio da ampla defesa, devidamente
previsto no art. 5º, inciso LV, da Constituição da República, com o escopo de
permitir ao acusado o exercício do seu amplo e irrestrito direito de defesa nos
autos do processo administrativo sancionatório, deve o particular tomar
conhecimento, com rigor de detalhe, do que a ele está sendo imputado, sob pena
de anulação da sanção.
Sobre o tema, ensinam Adilson de Abreu Dallari e Sérgio
Ferraz:
“O primeiro requisito para que alguém
possa exercitar o direito de defesa de maneira eficiente é saber do que está
sendo acusado. Por isso, é essencial que qualquer processo punitivo comece pela
informação ao acusado daquilo que, precisamente, pesa contra ele. Não basta,
por exemplo, publicar um edital dizendo que determinada pessoa cometeu uma
infração de trânsito, sem especificá-la; é necessário efetivamente fazer chegar
ao acusado a informação precisa sobre qual específica infração teria sido por
ele cometida, com todos os detalhes necessários ao exercício da defesa” (2001, p. 70).
No que se refere ao momento adequado para a instauração do
competente processo punitivo, tem-se que a questão é polêmica, haja vista a
existência de entendimento acerca da ocasião oportuna de desencadeamento do
referido processo.
Na opinião de alguns autores, as penalidades constantes dos
arts. 86 e 87 da Lei fed. nº 8.666/1993, do art.7º da Lei fed. nº 10.520/2002 e
do art. 47 da Lei fed. nº 12.462/2011, além de exigir expressa previsão
editalícia e contratual, cujos argumentos já foram ventilados, demanda a
instauração do processo administrativo durante a vigência do contrato, sendo a
extinção da avença um motivo obstador para o exercício da prerrogativa punitiva
da Administração.
Sobre o tema, ensina o saudoso Diogenes Gasparini:
“O cumprimento do objeto e o decurso do
prazo são fatos que resolvem por completo o contrato, pois todos os direitos
foram exercitados e todas as obrigações foram satisfeitas, nos exatos termos do
pactuado. Já não há obrigação a ser cumprida ou indenização a satisfazer
qualquer das partes, nem direitos a serem exercitados. O contrato está findo e
em razão dele nada pode ser exigido por qualquer das partes” (2012, p. 854).
Neste sentido, é o entendimento do professor Flávio Amaral
Garcia:
“A aplicação das sanções
administrativas deve ser concomitante à execução do próprio contrato
administrativo; daí a necessidade da fiscalização permanente do contrato e das
próprias obrigações trabalhistas, quando for o caso.
Logo, não pode, por exemplo, a
Administração Pública receber o objeto definitivamente (art. 73, I, b, da Lei fed. nº 8.666/93) e depois
pretender aplicar a penalidade administrativa” (2010, p. 354).
Da mesma forma é o magistério de Hely Lopes Meirelles:
“Convertido o recebimento provisório em
definitivo, não é lícito à Administração reter cauções e demais garantias da
execução ou aplicar multas retroativas ao contratado, sob o pretexto de
descumprimento contratual não apenado na oportunidade própria, na fase
executória do ajuste. Se assim agir, cometerá abuso de poder, corrigível por
via judicial” (2007, pp. 238/239).
Não é outra a posição manifestada no acórdão prolatado pelo
TRF da 2ª Região:
“2 – A extinção do contrato
administrativo pela conclusão do objeto ocorre com o recebimento definitivo da
obra ou serviço, comprovado mediante termo circunstanciado, assinado pelas
partes, após o decurso do prazo de observação, ou vistoria que comprove a
adequação do objeto aos termos contratuais (art. 73, I, ‘b’, da Lei nº 8.666/1993); exonerando-se dos encargos relacionados
ao negócio jurídico o contratante, que permanece obrigado, apenas, a reparar,
corrigir, remover, reconstruir ou substituir, às suas expensas, no total ou em
parte, o objeto do contrato em que se verificarem vícios, defeitos ou
incorreções resultantes da execução ou de materiais empregados (art. 69 da Lei
nº 8.666/1993), bem assim adstrito à responsabilidade civil pela solidez e
segurança da obra ou do serviço (art. 618 do Código Civil de 2002) e
ético-profissional pela perfeita execução do contrato (art. 73, § 2º, da Lei nº
8.666/1993), pelo que se infere pela inviabilidade de imposição de sanção
administrativa, na medida em que decorrente de avença já extinta”
(Desembargador Relator Poul Erik Dyrlund – Ap. Ms. nº 2002.51.06.003015-5).
Não se pode negar, ainda, o entendimento daqueles que
sustentam que a extinção do contrato não obsta a possibilidade de instaurar
processo administrativo punitivo. Neste sentido, é a posição de Jessé Torres
Pereira Junior e Marinês Restelatto Dotti:
“É possível a
abertura de processo administrativo para apurar a responsabilidade do
contratado pela inexecução total ou parcial do contrato e aplicação de sanção
após o encerramento do prazo de vigência contratual? A resposta é afirmativa. O
art. 58, IV, da Lei nº 8.666/93 confere à Administração Pública a prerrogativa
de aplicar sanções ao contratado, motivadas pela inexecução total ou parcial do
ajuste. Não se trata de uma faculdade da Administração, mas de poder-dever de
apurar a eventual prática da infração, por meio de regular processo
administrativo.
O poder-dever de
aplicar sanção motivada pela inexecução total ou parcial do objeto não se
encerra com o término da relação contratual. Se fosse assim, bastaria a
rescisão unilateral ou amigável para afastar a responsabilidade do contratado.
Mas o poder-dever de
aplicar sanções não perdura infinitamente. Qual seria, então, o prazo
prescricional para a aplicação das sanções decorrentes da inexecução total ou
parcial do ajuste? Seria aplicável a Lei nº 9.873, de 23.11.1999? O prazo
prescricional da Lei nº 9.873/99 refere-se apenas à ação punitiva fundada no
exercício do poder de polícia, o que determina sua inaplicabilidade em transgressão
decorrente de inexecução contratual. É o texto do art. 1º da Lei nº 9.873/99:
“Art. 1º Prescreve em cinco anos a ação punitiva da Administração Pública
Federal, direta e indireta, no exercício do poder de polícia, objetivando
apurar infração à legislação em vigor, contados da data da prática do ato ou,
no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado”.
Seria aplicável,
então, o prazo prescricional preconizado pelo Decreto nº 20.910, de 6.1.1932? Também não, tendo em vista que a
norma do art. 1º do referido decreto regula a prescrição de ações judiciais
dirigidas à Fazenda Pública (“Art. 1º As dívidas passivas da União, dos Estados
e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda
Federal, Estadual ou Municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em
cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem)” (2012, p.
407).
Ainda sobre a questão da possibilidade
ou não da aplicação de sanções em razão da extinção do contrato administrativo,
cumpre-nos lembrar que, além da garantia
legal, expressamente prevista no art. 24 do Código de Defesa do
Consumidor, poderão os contratos administrativos prever cláusula expressa
dispondo sobre garantia do objeto demandado.
Diante desta garantia fixada no
instrumento contratual, assume o particular contratado a obrigação de prestar a
competente garantia até o fim do prazo
previsto no edital e fixado no instrumento contratual, mesmo estando o referido
ajuste expirado, conforme estabelece o art. 66 da Lei de Licitações, sob
pena de caracterização de inexecução contratual.
Assim ocorre, uma vez que a garantia contratual a qual foi ajustada
permanece válida, ainda que encerrado o contrato, à luz dos preceitos insertos
no caput do art. 69 e § 2º do
art. 73, ambos da Lei nº 8.666/1993. Trata-se, no caso, de obrigação decorrente
do ajuste, fundado na teoria da ultratividade contratual, que, conforme ensina
Diogenes Gasparini, “permite que as conseqüências de certos fatos ocorridos na
vigência do contrato possam ser exigidas
mesmo depois de sua extinção” (2006, p. 231).
Destaque-se que tal intelecção foi objeto da Orientação
Normativa nº 51, editada pela Advocacia
Geral da União, que reza:
"A garantia legal ou contratual do
objeto tem prazo de vigência próprio e desvinculado daquele fixado no contrato,
permitindo eventual aplicação de penalidades em caso de descumprimento de
alguma de suas condições, mesmo depois de expirada a vigência contratual"
(Portaria nº 124/2014 – DOU de
02/05/2014, Seção 1, pág. 2).
Verifica-se, desta feita, que, se o
particular contratado não cumpre a garantia prevista editalícia e
contratualmente, a sua responsabilidade persiste ainda que o contrato esteja
extinto, sendo tal postura do colaborador do Poder Público caracterizado como
uma inexecução contratual, fato que demandará a instauração de um processo administrativo
sancionador, caso tal hipótese caracterize-se como uma infração administrativa
no edital ou contrato.
Uma vez instaurado o processo administrativo punitivo, de ofício
pelo Poder Público ou mediante solicitação por terceiros, deverá a
Administração sancionadora notificar ou intimar o particular licitante ou
contratado, para, no prazo de 5 (cinco) dias úteis, ex vi do art. 87, § 2º, da Lei de Licitações c/c o art. 9º da Lei
nº 10.520/2002 c/c o art. 47, § 2º, da Lei fed. nº 12.462/2011, apresentar a
sua defesa prévia, arrazoado que
assentará todas as justificativas por ter incorrido em uma das infrações
constantes do instrumento convocatório e contratual.
Poderá ocorrer que o particular infrator se
encontre em local incerto e não sabido, fato que prejudicará a notificação ou
intimação a ser realizada pela Administração. A fim de dar conhecimento do
processo administrativo sancionatório que foi instaurado a seu desfavor, fato
que possibilitará que o particular se defenda adequadamente, deverá a
notificação ocorrer por meio de edital publicado na imprensa oficial
competente, a exemplo do que determina o art. 26, § 4º, da Lei de Processo
Administrativo (Lei nº 9.784/1999). Procedendo-se, assim, evita-se futura
alegação de violação ao princípio do contraditório e da ampla defesa.
Ainda sobre a necessidade de reverência ao princípio da
ampla defesa, entende-se que o prazo para a apresentação da defesa prévia será
de 5 (cinco) dias úteis, contados a
partir da abertura da vista do processo administrativo ao particular que a ele foi imputado a prática de um
ato caracterizado como infração administrativa.
Acerca do processamento na repartição pública, ensina Ivan
Barbosa Rigolin que: “Quanto ao expediente punitivo, pode ele ser o próprio
processo da contratação, como pode ser apartado, devendo nesse caso permanecer
em apenso ao processo principal” (1994, p. 428).
Grife-se que, uma vez instaurado o processo administrativo
pela Administração licitante, a aplicação da competente sanção restará
garantida, ainda que a conclusão desse processo administrativo seja mais
demorada, em razão de fatos supervenientes à sua instauração.
Verifica-se, todavia, que o período necessário para a conclusão
do processo sancionatório não pode se perpetuar no tempo, sob pena de não
garantir a punição, o que acarretará impunidade, haja vista o velho hábito de
alguns agentes públicos, que relutam em exercer tal função ou que colocam tal
expediente na prateleira, aguardando o momento adequado de punir o particular,
o que prejudica a segurança jurídica. Logo, é necessário que a lei do ente
político ou regulamento das entidades governamentais locais estabeleça um
limite temporal para regular a conclusão do expediente administrativo em
destaque.
Destaque-se que a Lei nº 8.666/1993 é silente sobre o prazo
de conclusão do processo sancionatório. Não obstante isto, o art. 49 da Lei nº
9.784/1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública
federal, estabelece que, concluída a instrução de processo administrativo, a
Administração tem o prazo de até trinta dias para decidir, in casu, se sanciona ou não o particular, salvo prorrogação por
igual período expressamente motivada.
4.2 Da instrução do processo
administrativo punitivo
Adentrando-se na fase instrutória do processo administrativo
punitivo, ante a necessidade de ser observado o princípio do contraditório e da ampla defesa, devidamente previsto no art. 5º, inciso LV, da CF/1988, não
poderá a Administração impor sanção ao particular ou afastá-la sem que ocorra a
adequada instrução processual, tanto pelo particular como pelos agentes
públicos incumbidos de demonstrar a infração administrativa. Com isso,
deseja-se asseverar a inexistência de meios sumários para aplicação ou
afastamento de punição a particulares, seja no âmbito das contratações públicas
ou não.
Após a instauração ou abertura do processo administrativo
sancionatório e apresentada ou não a defesa pelo particular, que poderá ser
protocolizada no órgão ou entidade ou encaminhada por e-mail ou fax, restará
iniciada a fase instrutória, momento processual em que será produzido tudo
aquilo que se apresentar útil e necessário para gerar o convencimento da
autoridade com a prerrogativa de sancionar o particular infrator. Nesta
ocasião, portanto, ocorrerá a produção de provas, devendo ser juntados nos
autos do processo administrativo documentos, perícias, pareceres, depoimento da
parte e das testemunhas, caso existam.
De forma a reverenciar o princípio da ampla defesa, alerta
Antonio Cecílio Moreira Pires que, “Não podemos deixar de destacar que a
instrução processual deve ser a menos onerosa possível para o interessado”
(2014, p. 89). Em relação ao princípio da eficiência administrativa, ressaltam
Adilson de Abreu Dallari e Sérgio Ferraz que, “a instrução deve ser a mais
completa possível, deve evitar providências inúteis, conduzir-se com
simplicidade e economicidade buscando atingir o resultado final com celeridade”
(2001, p. 124).
Por derradeiro, entende-se ser necessário que o expediente
sancionatório seja encaminhado à assessoria jurídica do órgão ou entidade com o
escopo de ser verificada, pelo referido órgão técnico, a legalidade do
procedimento administrativo punitivo em andamento.
4.3 Da decisão do processo
administrativo punitivo
Preliminarmente, é oportuno salientar que a Administração
Pública, quando conduz processos administrativos que objetivam restringir
direitos de colaboradores, deve atuar de formar imparcial, não podendo,
ao cabo do processo administrativo, existir decisões que se apresentem como
desproporcionais ou arbitrárias, portanto, ilegítimas. Desta feita, no processo
administrativo, quando a Administração é juiz e parte ao mesmo tempo, a fim de
evitar qualquer excesso, a atuação deverá pautar-se pelos princípios da
proporcionalidade e razoabilidade, sob pena de rediscussão do assunto na seara
judicial, com arrimo no inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal de 1988.
Por ser oportuno, ensina Rafael Munhoz de Mello:
“Nos processos em que a Administração
figure também como parte, além de órgão julgador, sua situação é,
evidentemente, desigual em relação ao particular. A Administração ocupa duas
posições na relação processual, juiz e parte, peculiaridade que coloca em risco
a imparcialidade que se exige do órgão julgador. O particular contende com uma
parte que, ao final do processo, proferirá a decisão, situação que pode
transformar o processo numa ‘pantomima, um ritual sem conteúdo ou, pior que
isso, uma simples forma de enganar o Administrador de boa-fé’. Essa ‘dupla
personalidade’ da Administração Pública no processo administrativo pode levar
ao quadro paranóico que alude o processualista italiano Franco Cordeiro, no
qual a parte encarregada de colher as provas busca obter aquelas que reforçam
seu próprio convencimento prévio acerca da culpabilidade do agente” (2007, p.
231).
Posto isto, concluída a instrução processual, deverão os
autos do competente processo administrativo ser encaminhados para a autoridade
competente, a ser apontada nos instrumentos convocatório e contratual ou do
regulamento do órgão ou entidade sancionadora, com o escopo de ser por ela
proferida uma decisão motivada.
Com efeito, sendo a decisão que aplicou ou afastou a sanção
administrativa um ato administrativo, para ele ser perfeito e válido, deve, na
decisão, a autoridade competente enunciar, descrever e explicitar o motivo que
a levou a decidir daquela maneira, sob pena de a manifestação estatal ser
ilegal.
Como bem ensina Antônio Cecílio Moreira Pires, “Dado o
ilícito, deve ser imposta a sanção. Isto é, não há qualquer discrição em se
impor ou não a sanção, sendo essa competência plenamente vinculada à ocorrência
daquele” (2010, p. 30).
Neste sentido, já prolatou o TCU:
"O âmbito da discricionariedade na
aplicação de sanções em contratos administrativos não faculta ao gestor,
verificada a inadimplência injustificada da contratada, simplesmente abster-se
de aplicar-lhe as medidas previstas em lei, mas sopesar a gravidade dos fatos e
motivos da não execução para escolher uma das penas exigidas nos arts. 86 e 87
da Lei nº 8.666/1993, observado o devido processo legal" (Acórdão nº
2.558/2006, 2ª C., Relator Ministro Walton Alencar Rodrigues).
Depreendendo-se da instrução processual, sem laivo de
dúvida, que o particular incorreu na infração administrativa com dolo ou culpa, é dever da
Administração aplicar a correspondente sanção, inexistindo discricionariedade
para tanto. Age com dolo o particular licitante ou contratante que deteve a
intenção de incorrer em conduta tipificada como infração administrativa. Já
atua com culpa aquele que, em razão de negligência, imprudência ou imperícia,
pratica um ato reprovável cuja consequência é a imposição de uma punição, ao
cabo do processo sancionatório.
Da mesma forma, inexistindo motivada justificativa por parte
do particular infrator para a prática de ato infracional, deve também a sanção
administrativa ser devidamente aplicada, devendo a reprimenda ser a medida
necessária ao ato reprovável praticado.
A punição imposta ao particular contratado, que deverá
ocorrer motivadamente, deverá observar o princípio da proporcionalidade e da razoabilidade, devendo a fixação das penalidades ser
adequada, vale dizer, ser a medida necessária à gravidade do descumprimento
contratual, sob pena de a referida punição ser ilegítima.
De outra banda, existindo justificativa para a ocorrência do
ato caracterizado como infração administrativa, fato esse que deverá ser
apresentado na instrução do processo punitivo, deve a pretensão de penalizar o
particular ser afastada.
Como bem ensina Marçal Justen Filho, “Obviamente, somente
incidirão as sanções administrativas em caso de inadimplemento culposo. Se
havia motivo justificado para o atraso, o particular não poderá ser punido”
(2012, p. 1007).
A fim de afastar a impunidade no âmbito dos processos
punitivos, fato que pode estimular a prática de infrações, o que é prejudicial
ao interesse público, é dever da Administração não só aplicar formalmente as
sanções administrativas, mas efetivamente executá-las, a exemplo da realização
da cobrança dos valores fixados a título de multa contratual ou inscrevê-las
nos competentes registros cadastrais e cadastros de apenados, como, aliás,
determina o parágrafo único do art. 14 do Dec. nº 3.555/2000, que somente
poderá ocorrer após o julgamento da fase recursal, em reverência ao princípio
da presunção de inocência.
4.4 Da fase recursal do processo
administrativo punitivo
Da decisão administrativa que puniu o particular com as sanções
em destaque, caberá o devido recurso
administrativo no prazo de 5 (cinco) dias úteis, se outro maior não constar
da legislação ou regulamento local, a contar da sua intimação ou notificação,
nos termos do art. 109, inciso I, al. f,
da Lei nº 8.666/1993 c/c o art. 9º da Lei nº 10.520/2002.
O recurso administrativo será dirigido à autoridade superior
no prazo de 5 (cinco) dias úteis, conforme determina o § 4º do art. 109 da Lei
nº 8.666/1993, sendo o encaminhamento, todavia, realizado pela autoridade sancionadora,
fato que permitirá que ela reconsidere a decisão de punir, ora recorrida. Caso
entenda, contudo, não ser caso de modificação da decisão combatida, haja vista,
entender que é adequada em razão da infração administrativa cometida,
encaminhará o recurso administrativo à autoridade superior com o escopo de
apreciar as razões recursais apresentadas.
Consoante prevê o art. 109, § 2º, da Lei de Licitações, o
recurso administrativo interposto em razão da aplicação da sanção em estudo não
terá efeito suspensivo, ou seja, os efeitos da decisão sancionatória passam a
valer desde o momento da edição do referido ato administrativo, podendo a
autoridade competente, motivadamente, e presentes razões de interesse público,
atribuir ao recurso interposto eficácia suspensiva.
Conforme reza o art. 109, § 5º, da Lei de Licitações, o
prazo de recurso contra a decisão que sancionou o particular não se inicia ou
corre sem que os autos do processo administrativo sancionatório estejam com
vista franqueada ao apenado ou seu procurador.
Entende-se que, somente após o encerramento da fase
recursal, ocasião em que se observa a “coisa julgada administrativa”, é que
deverá ocorrer a inscrição do particular em cadastros de apenados, a exemplo do
Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas (CEIS) ou registro
cadastral de entidades ou órgãos públicos licitadores, como o Sistema de
Cadastramento Unificado de Fornecedores (SICAF), conforme determina o parágrafo
único do art. 14 do Decreto nº 3.555/2000, uma vez que “aos particulares que
enfrentam o poder punitivo estatal é assegurada a garantia de presunção de inocência, prevista no inciso LVII do art. 5º da
Constituição Federal”, como bem ensina Rafael Munhoz de Mello (2007, p. 244).
Com efeito, tem-se que as informações assentadas no registro
cadastral do particular se apresentam como permanentes, inexistindo autorização
para que a Administração Pública as exclua após determinado período de tempo, a
exemplo da ocasião da extinção do ajuste, salvo se as informações introduzidas
sejam divorciadas da realidade.
Caso a informação registrada seja uma punição, cujo teor fez
coisa julgada administrativa, entende-se que a mesma, em nenhum momento,
restringe o direito subjetivo do particular apenado de participar de licitações
ou celebrar contratos administrativos, salvo aplicação de uma das sanções
constantes no art. 87, incisos III e IV, da Lei nº 8.666/1993 e no art. 7º da
Lei nº 10.520/2002, observando-se, logicamente, o alcance das sanções fixadas
na lei.
Ao particular inconformado com a punição imposta pela
Administração, resta buscar socorro ao Poder Judiciário, com estribo no
princípio da inafastabilidade de jurisdição, devidamente fixado no art. 5º,
inciso XXXV, do Texto Constitucional.
Demais disso, temos a esclarecer que “a constituição de nova
sociedade, com o mesmo objeto social, com os mesmos sócios e com o mesmo
endereço, em substituição a outra declarada inidônea para licitar com a
Administração Pública Estadual, com o objetivo de burlar a aplicação da sanção
administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de Licitações (Lei nº
8.666/1993, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para
estenderem-se os efeitos da sanção administrativa à nova sociedade constituída).
A Administração Pública pode, em observância ao princípio da
moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos
tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com
abuso de forma e fraude à lei, desde que facultados ao administrado o
contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular.” (STJ - RMS nº 15.166/BA - Relatoria:
Ministro Castro Meira).
Por derradeiro, permite-se a revisão do processo sancionatório com o objetivo de possibilitar ao
particular apenado a rediscussão da sanção aplicada a qualquer tempo no âmbito
das contratações públicas.
Sobre tal direito, ressalte-se que o egrégio Tribunal de
Contas da União, conforme consta de seu Manual de Licitações, reconheceu
expressamente a possibilidade da revisão do processo sancionatório no âmbito
das licitações públicas e contratos administrativos, asseverando que:
"Processos administrativos de que
resultem sanções poderão ser revistos, a qualquer tempo, a pedido ou de ofício,
quando surgirem fatos novos ou circunstâncias relevantes suscetíveis de
justificar a inadequação da sanção aplicada.
Da revisão do processo não poderá
resultar agravamento da sanção" (2010, p. 754).
Saliente-se que o Superior Tribunal de Justiça também
garantiu a aplicação deste expediente no âmbito das contratações
governamentais, determinando ao Ministério dos Esportes que apreciasse um
pedido de revisão de uma sanção a qual foi aplicada no âmbito de um pregão.
Observe-se:
Mandado
de segurança. Processo administrativo. Pedido de revisão. Adequação da sanção.
Circunstância relevante. Cabimento.
1. “Os processos administrativos de que
resultem sanções poderão ser revistos, a qualquer tempo, a pedido ou de ofício,
quando surgirem fatos novos ou circunstâncias relevantes suscetíveis de
justificar a inadequação da sanção aplicada” (art. 65 da Lei nº 9.784/1999).
2. Cabível o pedido de revisão, não há
falar em impossibilidade jurídica do pedido, tampouco em intempestividade,
exsurgindo o direito líquido e certo do impetrante de ver apreciado seu
requerimento como apresentado – pedido de revisão – e integralmente.
3. Ordem concedida (STJ, MS nº 14965 DF
2010/200008503-0, Relator: Ministro Hamilton Carvalhido, Julgamento:
13.12.2010).
Para tanto, deverá o licitante ou contratado apresentar à
Administração sancionadora fatos novos e circunstâncias relevantes, as quais
sejam suficientes para justificar, neste novo processo administrativo, que a
punição aplicada anteriormente é inadequada.
No procedimento em apreço, deflagra-se um novo processo
administrativo, denominado revisivo, que poderá ocorrer de ofício, ou seja,
pela própria Administração sancionadora, ou a pedido do particular apenado.
A pouca utilização do instituto da revisão no âmbito das
licitações públicas e contratos administrativos advém, além do seu
desconhecimento (já que demanda a análise da principiologia e da legislação de
processo administrativo), do fato de a Lei nº 8.666/1993 não carregar em seu
bojo dispositivo que ampare a pretensão do particular em requerer da
Administração sancionadora a rediscussão da sanção aplicada, como já ocorre na
seara disciplinar, conforme estabelece o art. 174 da Lei nº 8.112/1990, o qual
dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União.
Destaque-se que a possibilidade da revisão do processo
sancionatório é garantida legalmente no âmbito federal por meio do disposto no
art. 65 da Lei nº 9.784/1999, denominada de Lei Federal de Processo
Administrativo.
Por meio desse novo pronunciamento, expurgam-se da seara
jurídica decisões desproporcionais, que passam a ser ilegítimas e arbitrárias,
incompatíveis com a nova ordem jurídica, o que é necessário em um Estado
Democrático de Direito já que “A Administração Pública, como instituição
destinada a realizar o Direito e a propiciar o bem comum, e não agir fora das
normas jurídicas e da moral administrativa, nem relegar os fins sociais a que
sua ação se dirige” (MEIRELLES, 2007, p. 200).
Não poderá, saliente-se, em hipótese alguma, ser majorada a
pena inicialmente aplicada, mesmo que se observe, ao cabo do processo
sancionatório, que a sanção foi insuficiente.
Em não sendo deferido o pedido de revisão, inexistindo tempo
para discutir tal revisão na seara administrativa ou já sendo conhecedor de que
a utilização do referido expediente será infrutífera, poderá o particular se
socorrer diretamente do Poder Judiciário, tendo em vista o princípio
constitucional da inafastabilidade de jurisdição, previsto no inciso XXXV do
art. 5º da Constituição Federal de 1988.
5. Conclusão
Como restou esclarecido, a garantia à segurança jurídica no
âmbito das contratações públicas, concretizada por meio da existência de regras
jurídicas disciplinadoras dos procedimentos administrativos atinentes à
licitação e execução do contrato administrativo, apresenta-se como
imprescindível para gerar a confiança necessária para atrair parte da
iniciativa privada descontente com a fragilidade dos regramentos existentes.
Por tal razão, no âmbito dos processos administrativos
punitivos deve ser estabelecido pelo Poder Público o regramento atinente ao
processo sancionador a fim de garantir a legitimidade da sanção imposta, bem
como a garantia dos direitos dos licitantes e contratados. Para tanto, como
restou aduzido, sugeriu-se um procedimento administrativo mínimo.
Procedendo-se, assim, garante-se, no
tocante aos processos punitivos, a segurança jurídica necessária para que tal
segmento de mercado se torne atraente para a iniciativa privada,
beneficiando-se, desta feita, a Administração Pública da ampliação dos
competidores nas licitações públicas.
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